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Viajantes

 

Desde o descobrimento pelos portugueses o Brasil tem sido ponto de passagem obrigatória, ou mesmo de destino, de viajantes europeus que aqui aportaram com diferentes objetivos. Até a chegada da família imperial, em 1808, registram-se relatos de viagens ao Brasil com interesses quase que exclusivamente científicos e econômicos, em sua maioria de viajantes rumo a outras regiões mais distantes do planeta que aqui aportavam para abastecerem as suas embarcações, realizarem contatos náuticos ou científicos etc. Após 1808, somam-se a estas viagens inúmeras missões diplomáticas, geográficas, botânicas, artísticas, militares etc. encomendadas pela própria Corte estabelecida no Rio, relatadas de modo então mais pormenorizado não somente por sábios e cientistas, mas também por colonos, militares e aventureiros. De um modo geral, os relatos de viagens por interesses exclusivamente pessoais ou turísticos são fenômenos quase que exclusivos do século XX. 

 

Estes relatos podem ser vistos numa perspectiva transcultural, no interior do que Mary Louise Pratt denomina “zona de contato”, ou seja, num campo discursivo que invoca “a presença espacial e temporal conjunta de sujeitos anteriormente separados por descontinuidades históricas e geográficas cujas trajetórias agora se cruzam”, e que põe em relevo não exclusivamente as atitudes que apartam e segregam, e sim “as dimensões interativas e improvisadas dos encontros coloniais, tão facilmente ignoradas ou suprimidas pelos relatos difundidos de conquista e dominação” (*).

 

Construídos inicialmente sob a perspectiva do Iluminismo, isto é, almejando (quase) sempre a mais “pura” racionalidade e neutralidade científica, estes relatos assimilam com o passar do tempo estratégias discursivas que têm como alvo um público leitor europeu cada vez mais amplo e mais interessado nas terras “exóticas” do Brasil. Esta inflexão corresponde a um contexto histórico de profundas mudanças na ordem mundial pós-napoleônica, com grande repercussão nos rumos migratórios, econômicos, científicos, estéticos e lingüísticos. São relatos de um olhar que tudo esquadrinha, mede, ordena, tudo submete à lógica da produção da mercadoria, da circulação do capital e do consumo, com vistas à ocupação de terras (colônias), à conquista de novos mercados e novos espaços de penetração ideológica e cultural. 

 

São particularmente relevantes os relatos de viajantes dos séculos XVIII e XIX, pois eles já contêm os elementos fundamentais do olhar europeu sobre o Brasil e os brasileiros próprios da época do capitalismo industrial, e que servirão de base para as construções identitárias com as quais os próprios brasileiros irão construir a sua história no século XIX, e muitos dos quais vão se conservar até a época contemporânea. Estes relatos deixam transparecer as estratégias de poder peculiares de um projeto europeu de reconquista de influência, nos marcos de um domínio econômico neocolonial, que, ao contrário do que seria de se supor, mantêm-se surpreendentemente vivos até os dias de hoje nas disputas ideológicas próprias da globalização.

 

A presente exposição virtual limita-se a princípio aos relatos de alemães no Setecentos e Oitocentos. Nestes dois séculos, torna-se complexa a tarefa da definição do conceito "alemão" tanto em termos culturais quanto político-estatais. Sob estes dois pontos de vista, ao longo de todo o século XVIII os alemães compuseram com diferentes etnias o Sacro Império Romano Germânico. Definitivamente destruído em 1806 por Napoleão, o Império, que se mantivera por séculos, sofre uma profunda reconfiguração estatal em 1815. A partir da derrota do imperador francês, redesenha-se e passa a constituir a Liga Alemã (Deutscher Bund). Considerada por diversos historiadores como um entrave à unidade nacional alemã, a Liga Alemã entra em colapso em 1866, com a guerra entre a Prússia e a Áustria. A fundação do novo Império Alemão (Deutsches Reich) em 1871, formaliza em definitivo a separação dos dois estados alemães, vertebrados respectivamente pelos prussianos e austríacos. Os suíços retornam à sua forma federativa após o fim da Batalha de Waterloo. Evidentemente, os relatos de viajantes alemães no Brasil configuram discursivamente essa complexidade e representam um desafio à historiografia contemporânea.

 

 

(*) PRATT, Mary Louise. Os Olhos do Império: relatos de viagens e transculturação, Tradução de Jézio Hernani Bonfim Gutierre, Bauru: EDUSC, 1999.

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